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sexta-feira, abril 26, 2024
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Única negra no STF, juíza Flávia Martins quer ampliar o imaginário de meninas pretas

Primeira juíza-ouvidora da Suprema Corte, escritora e doutoranda pela USP conta sobre as barreiras quebradas e as conquistas alcançadas ao longo de sua trajetória

 

Por Guilherme Ribeiro*

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil é formado por 11 ministros, indicados pelo presidente da República. Atualmente a composição do STF conta com Luís Roberto Barroso como presidente, e com os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Nunes Marques, André Mendonça, Cristiano Zanin e Flávio Dino. De 11 nomes, o Supremo conta com apenas uma ministra mulher e, dentre os nomeados, apenas Flávio Dino se autodeclara pardo, mesmo já tendo se declarado como branco nas eleições de 2014.

É dentro deste cenário, de um Supremo representado por uma parcela menor que 20% de ministros não homens ou não brancos, que Flávia Martins de Carvalho se destaca. Com graduação e mestrado em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente em processo final de doutorado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito (FD) da USP, Flávia ocupa a posição de primeira juíza-ouvidora do STF, nomeada por Barroso para o cargo.

“Eu já era juíza auxiliar do Barroso desde 2021, a convite dele, e quando ele assume a presidência do STF vem essa nomeação para assumir a Ouvidoria do Supremo. A Ouvidoria foi criada na gestão do Barroso e aprovada em dezembro de 2023. Assim, eu sou a primeira pessoa a assumir este cargo, e por felicidade a primeira juíza-ouvidora do STF é uma mulher negra”, comentou em entrevista ao Jornal da USP.

Anterior a sua indicação como juíza-ouvidora, o nome de Flávia era mencionado constantemente em discussões sobre outro cargo do STF. Com a aposentadoria compulsória da ex-ministra Rosa Weber se aproximando, o presidente Lula conviveu com pressões externas – sobretudo do movimento negro organizado – para que nomeasse outra mulher para o cargo e, de preferência, que não fosse branca. Entre as sugestões, despontava o nome de Flávia, na época ainda juíza-auxiliar de Barroso.

A juíza-ouvidora do STF, Flávia Martins de Carvalho, e o presidente da Suprema Corte do Brasil, Luís Roberto Barroso
Flávia Martins de Carvalho e Luiz Roberto Barroso – Foto: Arquivo Pessoal

Apesar disso, o presidente nomeou Flávio Dino para ocupar a cadeira de Rosa Weber. Flávia, porém, comenta que em nenhum momento criou expectativas de ser indicada ao cargo.

“Eu não me coloquei como candidata à posição, até por isso não gerei expectativa alguma. Internamente, inclusive, esse não era um assunto comentado. Isso é algo muito mais externo, embora eu entenda que seja, sim, importante que o Supremo tenha uma composição plural e diversa. Mas, é claro que me sinto muito lisonjeada de ter sido lembrada nas indicações, vejo isso como um reconhecimento ao meu trabalho.”

Além da posição ocupada no STF, Flávia é também juíza vinculada ao Tribunal de Justiça (TJ) do Estado de São Paulo desde 2018, e também já deu aulas de Direito entre 2009 e 2019. Além da carreira jurídica, a juíza já atuou na área da comunicação, com sua primeira formação em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), concluída em 1998.

Juíza de Direito, juíza-auxiliar e juíza-ouvidora

Antes de iniciar sua trajetória dentro dos tribunais, Flávia atuou em diferentes áreas dentro do Direito: já foi monitora de cursos de graduação, além de pesquisadora pela UFRJ no grupo de pesquisa do Observatório da Justiça Brasileira (OJB). A juíza também teve longa atuação como docente, lecionando durante dez anos, sendo sete em cursos do ensino superior.

Após alguns anos atuando na iniciativa privada, Flávia entrou no TJ de São Paulo, em outubro de 2018, como juíza de Direito, 1ª instância do Estado. O tribunal que Flávia compõe conta com aproximadamente 2.500 magistrados, dos quais cerca de apenas 1% se autodeclaram pretos – um cenário que pode demonstrar a desigualdade racial no sistema de justiça brasileiro.

Para seguir quebrando as barreiras estruturais impostas a corpos negros, Flávia se mudou para Brasília quando foi convidada, em 2021, pelo então ministro do STF Luís Roberto Barroso, para compor seu gabinete como juíza-auxiliar, cargo que exerceu por dois anos. Após a eleição de Barroso à presidência do STF, em agosto de 2023, Flávia não demorou a trocar de função. Com a aprovação da criação da Ouvidoria do STF, em dezembro do mesmo ano, a pesquisadora foi mais uma vez nomeada por Barroso, agora como juíza-ouvidora do Supremo, a primeira a exercer o cargo.

“É de felicidade do destino que a primeira pessoa a assumir o cargo da Ouvidoria seja uma mulher negra. E é importante destacar que a nomeação de pessoas negras para cargos dessa dimensão não deve ser vista como uma manobra para evitar críticas ou agradar parte da população. Eu acredito que essas pessoas são indicadas por conta de sua capacitação e do bom trabalho apresentado. Eu, por exemplo, tenho duas graduações, um mestrado e sou doutoranda. Será que é só o fato de ser uma mulher negra que me colocou onde estou hoje?”, questiona.

Ainda que seja uma recente aprovação da Suprema Corte, a criação da Ouvidoria é parte do projeto de reestruturação do STF, e parte da transformação da antiga Central do Cidadão. Essa que, até então, era a unidade responsável por gerir canais de comunicação destinados à interlocução direta com a sociedade. O canal, porém, era de menor atuação. E com a criação da Ouvidoria, o objetivo, além de ampliar as atividades, é aumentar suas atribuições.

Escrevivência

Após a graduação e o título de mestre em Direito pela UFRJ, Flávia está no processo de finalização de seu doutorado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. A juíza escolheu como tema de sua tese o conceito de Escrevivência, da escritora Conceição Evaristo, aplicado ao Direito.

Maria da Conceição Evaristo de Brito é uma letrista, pesquisadora e autora brasileira contemporânea, formada em Letras pela UFRJ, também com títulos de mestre e doutora em Literatura. Iniciou sua trajetória como escritora na década de 1990, com contos que compõem os Cadernos Negros do Grupo Quilombhoje, além de publicações como os romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006). Em 2015 foi contemplada com o Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas pelo livro Olhos d’Água.

Entre setembro de 2022 e dezembro de 2023, Conceição Evaristo foi titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.  O programa da escritora como titular da Cátedra deu origem à disciplina “Escrevivência: sujeitos, lugares e modos de enunciação – corpus literário em diferença”, matéria da qual Flávia foi discente durante o seu doutorado.

Conceição Evaristo e Flávia Martins de Carvalho no Festival Kwanzaa-Escrevivência – Foto: Flávia Carvalho/Arquivo Pessoal

A expressão escrevivência vem da aglutinação das palavras escrever e vivência, termo que segundo a autora não se limita à escrita de si, pois carrega a vivência de um coletivo, e com isso permite a reescritura da história através das vozes silenciadas.

Em sua tese, Flávia busca relacionar o conceito de Conceição com o mundo do Direito, e comenta a importância de entender os sentidos do Direito, do que é justiça e do que é igualdade, e como essas noções se relacionam com a negritude. Segundo ela, o Direito pode ser uma ferramenta de transformação social e fomento à justiça, mas pode ser também um instrumento de manutenção de desigualdades.

“Olhar o Direito pela perspectiva da Escrevivência de Conceição Evaristo significa entender que, no entendimento daqueles que a aplicam, a justiça é, sim, igualitária a todos os humanos. Compreender que a justiça não é aplicada igualmente para negros e brancos, porque nossa sociedade foi construída numa estrutura que coloca o negro como ‘menos humano’ do que o branco. E por isso a vida da pessoa negra pode ser violada, porque a humanidade dessas pessoas não é plenamente reconhecida”, explica Flávia.

Da Comunicação ao Direito

O início da vida acadêmica e profissional de Flávia se estendeu para além da magistratura. Formada pela UERJ em Comunicação Social, em 1998, Flávia atuou na área durante alguns anos, até que passou a se sentir infeliz com seu emprego e sua carreira, e decidiu pela abrupta mudança. Em 2004 deu início à graduação em Direito pela UFRJ, área em que atua até hoje.

Flávia afirma que durante a carreira já ouviu inúmeras vezes os questionamentos: por que se formar como comunicadora? Por que não o Direito logo de início?

“Eu era uma menina preta e pobre vinda da periferia, e quando você é uma menina preta e pobre, há lugares nos quais sua imaginação não alcança. Sonhar em se formar em Direito, em ser uma juíza em um tribunal estadual e um federal, são coisas muito distantes de se imaginar, vindo de onde eu vim.”

No Brasil, o ensino superior ainda convive com desigualdades quando se trata de acesso para pessoas negras. Mesmo após a aprovação da Lei de Cotas (12.711), em 2012, ainda há disparidade nos números. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2020, apenas 18% da população negra de jovens entre 18 e 24 anos estavam matriculados em uma instituição de ensino superior. Entre os jovens brancos o número dobra, chegando a 36%.

A juíza-ouvidora do STF Flávia Martins de Carvalho quando criança
“Eu era uma menina preta e pobre”, conta – Foto: Flávia Carvalho/Arquivo pessoal

“Hoje as meninas pretas e pobres já conseguem se imaginar como juízas, ou alcançando outras posições de destaque. Pois veem uma pessoa semelhante a elas, que veio da mesma realidade que elas e que conseguiu chegar onde cheguei. […] Essa é a importância da representatividade, é dessa forma que podemos quebrar com a opressão, e com a interdição que colocam diante de nós.”

Além do magistrado

Longe das tribunas, Flávia atua como pesquisadora e ativista. Como autora, por exemplo, a juíza conta com quatro obras publicadas pela Editora Mostarda.

Flávia traz em suas obras histórias representativas que trabalham a consciência e a autoestima de pessoas negras. Entre elas, escreveu as biografias ilustradas de Lélia Gonzalez, importante intelectual do movimento negro do Brasil, e de Michelle Obama, a única primeira-dama negra na história dos Estados Unidos e advogada formada nas Universidades de Princeton e Harvard.

Mas os seus maiores orgulhos dentre suas publicações são as duas edições do box Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas. Ambos os volumes contam com dois livros cada, com os temas: Matemática e Ciências da Natureza e Linguagens e Ciências Humanas. Os livros homenageiam a vida e a história de 20 mulheres de importância em diferentes áreas por meio de poesias. O segundo volume, lançado em 2023, aborda o tema Sustentabilidade, também lembrando diferentes nomes femininos.

Mulheres Sonhadoras: Mulheres Cientistas (Vol. 2) – Foto: Divulgação/Editora Mostarda

Assim como a autora, a maioria das mulheres mencionadas são negras e brasileiras, mas os livros também reservam destaque para mulheres indígenas, brancas e estrangeiras. Elas atuam em diversas áreas, mas têm em comum a união de suas atividades profissionais com ações afirmativas e sociais.

“Eu escrevi Meninas Sonhadoras com o propósito de ampliar o imaginário de possibilidades das meninas e mulheres pretas, pobres e periféricas, que vêm de onde eu vim. Apresentando histórias reais de personagens reais de diferentes áreas, para mostrar que existem inúmeras opções do que buscar ser nesse mundo. É um trabalho que me traz muita satisfação e alegria em fazer”, reitera Flávia.

* Do Jornal da USP

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